A Indignação de Pascal ante a
negligência filosófica dos ateus
Introdução
Pascal foi um homem assombrado pela morte. Esta
vinha a ele constantemente, trajando diferentes aparências, mas nunca o
deixando na ignorância quanto a sua proximidade. Quando por fim o levou aos 39
anos, selou um importante episódio na história da filosofia moderna, e que seja
brevemente pensado nas linhas que se seguem. Um de seus pensamentos mais claros
sobre a questão da morte diz textualmente:
“É preciso ter a alma muito elevada para
compreender que não há aí satisfação verdadeira e sólida, que todos os nossos
prazeres não passam de vaidade; que os nossos males são infinitos; que
finalmente a morte que nos ameaça a cada instante deve colocar-nos
infalivelmente, dentro de poucos anos, na terrível necessidade de sermos
eternos, ou aniquilados, ou infelizes”.
Estas palavras fazem parte de seu pensamento “contra a indiferença dos
ateus”. Toda a trama é tecida em tom de argumentação apologética onde ele
tanto defende a doutrina católica da eternidade da alma quanto procura
persuadir os ateus a reverem suas posturas existenciais. Está claro na mente de
Pascal que a morte é um fenômeno espiritual e que deve ser tratada dentro
dessas categorias. Mas a grande massa dos indiferentes não trata deste assunto
com a devida atenção, pelo contrário, “gabam-se, depois de terem investigado
[superficialmente] em vão nos livros e entre os homens”.
Pascal enfatiza que “a imortalidade da alma é uma coisa que nos
preocupa tanto [que é preciso] todos os nossos pensamentos [tendo
em] vista esse ponto que deve ser o nosso último objeto”. As variantes
da doutrina permitem ao pensamento pascalino chegar a três possibilidades
fatais para a alma diante da morte: a eternidade (como sinônimo de vida
eterna), a aniquilação (que é o nada absoluto) e a infelicidade (concebida como
inferno). Sigamos este viés até de nos permitir o momento...
1. Eternidade
A eternidade pascalina é uma recompensa aos crentes. É o estado primário
da alma e o fim último da fé. Todos os que se importaram – de fato – com a
existência de Deus e o eminente encontro com Ele precisam preparar a alma para
aquele momento. Mas não é tarefa comum, pois Deus delegou à igreja o ministério
da comunicação da vida eterna, mas não descuidou do mistério deixando-o solto
no mundo. Ele é o guardião dos portais da fé, e investiga os corações para
saber se há diligência ou negligência por parte dos homens no que tange a
eternidade. Para os diligentes Deus confere fé e graça, mas obscurece ainda
mais o entendimento dos negligentes a fim de que não conheçam nada sobre o
além-túmulo.
Penetrar neste assunto é por demais angustiante ao mortal, uma vez que
nos falta a experiência do fenômeno, o que é fundamental para uma melhor
compreensão do que estamos tratando. A eternidade é um conceito artificial,
tomado de empréstimo para significar o infinito de tudo. Ninguém jamais
experimentou a infinitude de coisa alguma. Tudo se apresenta a nós cerceado
pelas fronteiras do finito, donde nos vem a abstração de que “assim como há o
finito, deve haver também o infinito”. Ainda assim, não contra-pomos a
eternidade ao finito, e sim, à temporalidade. Entendemos que “assim como existe
o tempo, deve existir a infinitude desse tempo num lugar que chamamos eternidade”.
Todavia, em Pascal eternidade não é sinônimo de tempo sem fim, e sim, ocasião
de beatificação, bem-aventurança, alegria plena. Não se trata apenas de vencer
o túmulo, mas receber a glorificação da presença absoluta de Deus.
Se for assim, está justificada a indignação dele contra os negligentes,
os quais “fazem profissão de estar procurando a verdade [mas]
exclamam não haver nada [e ninguém] que a mostre”. Esse “nada” seria
a Igreja, e o ninguém é “Deus”. Pascal concorda com eles. De fato, a Igreja não
pode iluminar quem está em trevas, nem Deus permite que o faça. Sua glória
eterna, sua presença totalizadora, sua felicidade incontável não é para os de
“alma baixa” que se contentam com a fugacidade dessa existência. Ele reservou a
eternidade somente para os crentes, não necessariamente os gigantes da fé, mas
aos que se entregam em fé ao mistério de Cristo.
2. Aniquilação
A segunda variante do pensamento pascalino é a possibilidade do
nada-pós-morte. É a linha férrea por onde o ateísmo trafica sua alienação
metafísica. Outra vez a indignação de Pascal volta-se contra a presunção dos
negligentes, pois, se este assunto deve assumir da cabeceira ao rodapé da pauta
existencial, como podem os ateus trancar o assunto sem terem exaurido todas
suas faculdades vitais sem resolver o dilema. “Para combater [a
imortalidade da alma], ser-lhes-ia preciso exclamar que fizeram todos os
esforços em procurá-la por toda parte, mesmo naquilo que a Igreja propõe com o
fim de nela instruírem, mas sem nenhuma satisfação”. Uma vez que o homem
deve gastar-se por inteiro neste assunto, é inadmissível que existam ateus no
mundo. Os que assim se assumem estão em débito com a eternidade e não são
dignos de compaixão.
“Só posso ter compaixão
dos que gemem sinceramente nessa dúvida, dos que a observam como a ultima das
desgraças e dos que, sem nada poupar para sair dela, fazem de tal pesquisa as
suas principais e mais sérias ocupações”.
O conceito de aniquilação é filosoficamente irracional, já que o complexo
ser pensante passa do absoluto ao nada em um acaso do azar. Se pensarmos o
absoluto em termos antropológicos podemos afirmar que a vida humana se
manifesta plena neste mundo. Não temos nenhuma experiência do absoluto senão em
nosso ato ontológico. O mais débil humano está plenamente vivo, ainda que
acamado em uma UTI. Não se trata da plenitude em sentido teológico, e sim,
cósmico. Esta vida plena exige um abarcamento maior, para além das tessituras
do tempo e do espaço, e quando admito que o nada me espera estou
irracionalizando o fenômeno da vida. Para dizer que vou ao nada é preciso antes
criar este nada, logo, o nada deixa de ser nada para ser algo. Sendo algo, caio
em um descrédito lógico, donde a indignação pascalina. O diálogo ateu não pode
parar com a primeira contradição lógica – é preciso vencer o debate...
3. Infelicidade
É provocante a terminologia que Pascal empregou aqui para a crença na
danação dos infiéis. Percebemos que não se trata de firmar os dogmas da igreja
sobre a existencialidade do paraíso e do inferno, mas demonstrar que o
além-túmulo reserva uma continuidade ao que se iniciou aqui. Enquanto para o
crente a eternidade se abre, para o ímpio a infelicidade de não ver a Deus
permanece. Se enquanto vivo o negligente ficou em trevas e não encontrou Deus,
esta tenebrosidade há que aumentar no pós-morte. Daí temos uma nuance de
ruptura entre Pascal e a o dogma da igreja, pois a doutrina oficial diz que os
maus também verão a Deus no Juízo Final. Mas Pascal usa o termo de infelicidade
em contraste com a beatificação, pois enquanto o crente enxerga Deus como
salvador, o incréu sequer encara o Eterno como juiz. A visão da glória de Deus
cega o ímpio e é uma infelicidade olhar para quem não se consegue ver. Seja
qual for a danação que o descrente há de receber, não há punição maior que a de
permanecer na incógnita da descrença sobre a existência de Deus. Não! O homem
mau não terá sua duvida satisfeita quando morrer. Irá vagar na infelicidade do
além-túmulo em um mundo sem ninguém.
4. Conclusão
Partindo da premissa de que a morte é um fenômeno incontestável cabe
perguntar sobre o que nos espera além-túmulo. Sendo a vida um bem inalienável
do ser humano é impróprio pensar no aniquilacionismo, aliás, a vida é a única
realidade incontestável que temos de preservar. Somente ela dá sentido ao tudo
que nos assessora. Não há como pensar o nada, e só podemos abrir alas ao algo
que se aproxima do além. Céu, Inferno, Paraíso, Hades, beatitude ou
infelicidade, seja o que for, algo nos aguarda nos pós-morte. Pascal nos chama
ao incomodo existencial. Não é confortável o estado de miséria que nos
encontramos ante a presença da morte, portanto, façamos algo de correto a
respeito da imortalidade da alma. O que? Qualquer coisa, menos nos
tranqüilizarmos com respostas incompletas formuladas em nossa poltrona de
estar.
“Só vejo o
infinito em toda parte, encerrando-me como um átomo e como uma sombra que dura
apenas um instante que não volta. Tudo o que sei é que devo morrer breve. O
que, porém, mais ignoro é essa morte que não posso evitar”.
Referencia bibliográfica
Todas as citações deste trabalho
foram extraídas da Edição
eletrônica: Ed Ridendo Castigat Mores (www.ngarcia.org),
disponível em http://search.4shared.com/q/1/pascal%20pensamentos?view=ls
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