Sócrates foi o mais interessado dos
homens que viveram,
e a sua vida a mais interessante
das vidas vividas;
mas esta existência foi-lhe
adscrita pela divindade,
e na medida em que lhe foi
necessário conquistá-la por si próprio
não deixou de conhecer a dor e o
sofrimento.
Sören Kierkgaard
Sócrates, teu reino não findou.
Durante mais de vinte séculos de
domínio,
vinte séculos,
tua férula domou os homens.
Mário Ferreira dos Santos
Sócrates bebe a cicuta;
foi uma vítima sacrificada à mediocridade,
à injustiça, à hipocrisia!
Foi a posteridade que tomou sobre
si vingar a memória do grande homem:
e enquanto a maldição do século pesa sobre seus
perseguidores,
sua glória se tem perpetuado sempre grande, sempre
radiante.
Frei Francisco do
Monte Alverene
A importância de Sócrates para a compreensão do fenômeno educativo atual
Ergue-se
ante nós o ícone da heurística[1],
uma figura julgada pelos homens e pela história. Embora confundido “[pela] maioria dos seus contemporâneos [como] um
sofista[2]”
acabou sublimado pela posteridade como “o
mais interessado dos homens que viveram, e a sua vida a mais interessante das
vidas vividas[3]“.
Não há como negar a singularidade do Filósofo para a história do pensamento
ocidental e a contribuição de sua metodologia pedagógica para a educação dos
homens. Considerado o patrono da Filosofia[4]
por Marilena Chauí, Sócrates chega aos nossos dias tão vivo quanto esteve antes.
Embora altares se ergam em sua
honra, o que poucos assumem - de fato - é a periculosidade da metodologia
socrática. José Américo cita uma declaração de Sócrates no Fédon que serve de alerta
do perigo: "... Eis o caminho que
segui. Coloco em cada caso um princípio, aquele que julgo o mais sólido, e tudo
o que parece estar em consonância com ele — quer se trate de causas ou de
qualquer outra coisa — admito como verdadeiro, admitindo como falso o que com
ele não concorda[5]"
É a maiêutica, “método
obstétrico, como ele mesmo o chamava, que leva[va] a partejar as idéias[6]”. Consistia
na intercalação de perguntas indutivas respostas induzidas. Partindo de um
assunto qualquer com seus interlocutores, Sócrates conduzia os diálogos apondo
questionamentos e cobrando conceituações. Suas réplicas e tréplicas iam além da
argumentação silogística, pois nunca concluíam o assunto, pelo contrário,
deixava-o em aberto para futuras altercações. E que perigo há no método? O
desenrolar da história de Sócrates no mostrará. Analisemos a construção
filosófica da tragédia socrática segundo Kierkgaard:
Tomemos Sócrates
como exemplo. É um herói trágico intelectual. A condenação à morte é-lhe
anunciada. Nesse instante, morre; porque se não compreendemos que é necessária
toda a força do espírito para morrer e que o herói trágico morre sempre antes
de morrer, não se irá muito longe na concepção da vida. O repouso em si é
solicitado a Sócrates como herói; mas, como herói trágico intelectual, ainda
lhe é exigido que, no último momento, tenha a força de alma de se realizar por
si próprio. Não pode, portanto, como o herói vulgar, recolher-se, permanecendo
frente à morte, mas deve efetuar esse movimento com tanta rapidez que, no mesmo
instante, se encontre com a consciência para além dessa luta e se afirme ele
mesmo. Se, por acaso, Sócrates se tivesse calado nessa crise de morte, haveria
atenuado o efeito da sua vida; faria suspeitar que a elasticidade da ironia não
era nele uma força do universo mas um jogo a cuja flexibilidade lhe era mister
recorrer no instante decisivo, na medida inversa para se manter pateticamente à
sua própria altura[7].
A periculosidade do método está em
sua conseqüência final. Quem ficar exposto à maiêutica será confrontado tanto
em seu modus quanto em seu locus vivendi. Verá ameaçado seu status
quo e será levado ao universo dialético,
“portanto,
trabalhando entre trevas e luz, entre opiniões boas e más, sopesando valores,
opiniões, não podendo ter melhor concretização que na discussão, no discorrer,
no correr daqui para ali, destas idéias para aquelas, portanto no diálogo, em
que as partes colocadas em posições diferentes, em pontos opostos, enfrenta[m]
as opiniões diversas para, através delas (diá), esclarecer[8]”.
Sócrates pagou por sua metodologia
pedagógica. Encareceu a maiêutica, valorizou a dialética e esvaziou o sofismo.
Ao se decidir pela cicuta sublimou o ideal pedagógico recusando o maior preço
oferecido: a própria vida! Não há maior contraste entre Filosofia e sofística
do que este: O Filósofo paga, o sofista vende. O Filósofo morre, o sofista
foge. O Filósofo ironiza, o sofista disfarça. Quando Sócrates encara a
aristocracia ateniense, não o faz temerariamente, o faz com galhardia, e propõe
seu maior paradoxo: “Se, pois, cumpre que
sentenciem com justiça e em proporção ao mérito, eu proponho o sustento no
Pritaneu[9]”
.
Não
há como encarnar o ideal socrático sem enfrentar o perigo de morte inerente a
ele. Não há educação – de fato – sem o confronto aberto às idéias frouxas do
senso comum. Não há verdade axiológica sem esmerilhar o verniz barato da
sofística. Ah, a sofística! Que golpe sofreu com o surgimento de Sócrates! Como
ficou murcha no encontro com a Filosofia. Perdeu a voz, tornou-se eco. Perdeu a
luz, ficou na sombra. Perdeu o preço, passou a mendigar. No decorrer deste
fórum tenho lido os elogios que os colegas fazem aos sofistas, dizendo:
“Na
verdade, além do sofismo não ser uma causa única para um problema de educação
atual, ele contribuiu (e muito) tanto para a educação da época grega, incutindo
no cidadão a idéia de que ele poderia, deveria e teria o direito de ser
participativo num processo democrático, na elaboração de leis que regem a vida
e os destinos da cidade, como também na nossa educação atual, perpetuando a
idéia de que o fundamental no ensino é dotar o aluno/cidadão de meios para se
defender de todos os conflitos de pensamentos e ações que a vida pública ou
pessoal possa provocar, de acordo com a conveniência e circunstância, através
de seu próprio diálogo expondo as suas opiniões pessoais” (William).
“Portanto
há a necessidade de considerar-se o contexto histórico da época, e naquela
época o movimento sofista foi necessário, a democratização do conhecimento era
urgente e assim foi realizado. Seu desenvolvimento em forma de saber
especializado deu origem à forma de ensino o qual presenciamos na atualidade,
que desvincula o ser do todo, tornando-o um especialista para o mercado de
trabalho, conforme citei em fóruns anteriores” (Marcos Franciscato)
“...tudo
é uma questão de interesse. Qualquer pessoa defende os seus respectivos
interesses e os filósofos não são diferentes. O que não se pode aceitar é
afirmativa, genérica, de que os sofistas são os malvados da humanidade. Para a
época, o pensamento dos sofistas era extremamente avançado. Lógico, que muitas
posições filosóficas de alguns sofistas hoje devem estar superadas em razão do
desenvolvimento do pensamento filosófico. No entanto, é preciso reconhecer a
importância dos sofistas” (Carlos Henrique).
“...os
sofistas preocupavam-se em preparar o homem para viver em sociedade. As
exigências do cenário social e político pediam homens com a capacidade de
argumentar questionar, o poder de persuasão era é continua sendo um mecanismo
muito importante na tomada de decisões. O que tornava um homem grego um cidadão
além dos fatos históricos conhecidos por todos, era a participação nas
deliberações políticas” (Calebe).
“A liberdade de pensamento, criado
pelo ceticismo dos sofistas, desenvolve a sua atividade de criar e recriar
novas crenças e novas regras. A retórica era a técnica de pensamento pela
palavra, de tanto pôr em causa e derrubar o estabelecido, como também de erguer
novas idéias e novos valores. No entanto, se mantinham sempre sujeitos à
crítica. Entro em defesa dos sofistas quanto propagadores do discurso e dos
ensinamentos diversos. As contribuições que tiveram para época se estendem até
os dias de hoje, e isso é inegável” (Elba) .
“Apesar
de os Sofistas serem acusados de "prostituir o conhecimento ao ensinar a
qualquer um em troca de dinheiro", eles são reconhecidos como sendo os
responsáveis pelo processo de democratização da Grécia, devido aos seus
conceitos de relativismo e subjetivismo” (Gilmar).
“De
fato, muito mais que falaciosos, inimigos da verdade, charlatães ou fanáticos
como dizia Henry Sidgwick, e tantos outros termos que pejorativamente foram
classificados, os sofistas estabeleceram as bases de uma educação popular que
tem como protagonista o sujeito cognoscente. E essas bases podem ser válidas
inclusive no contexto hodierno. A partir desse prisma, é necessário, portanto,
que reconheçamos os sofistas tal que dizia Reale, "eram verdadeiros
especialistas no saber" (Ademildo).
“...os
sofistas foram os primeiros a aperceberem-se de que o sistema educativo da
altura era insuficiente na preparação dos jovens, pelo que se proclamaram
professores, indo pelo mundo fora em busca de pupilos” (Inês).
Creio que parte da admiração que estão devotando aos
sofistas advenha da leitura primeira. Com o decorrer do curso, e nosso amadurecimento
epistemológico, iremos ter melhores oportunidades para conhecermos a pequenez
da sofística ante a grandeza da Filosofia Socrática, isto é, se corrermos o perigo
proposto, como disse Frei Francisco: “Quase todos os filósofos receberam em prêmio
o ostracismo ou a morte![10]”
O ideal filosófico exige postura socrática e
enfrentamento de críticas e críticos. Exige revisão existencial sem
retratamentos fúteis ou negociações pela vida. É o Ser pelo Ser, o Dever pelo
Dever e o Saber pelo Saber. É tornar interessante ato cognitivo, ainda que a
duras penas e sofrimento doloroso. É chamar a si a responsabilidade de conduzir
outros pelo caminho da Verdade e do Bem. É propor-se ao juízo inglório do
elitismo acadêmico, político ou econômico. É ostentar ante os algozes a altivez
da Causa, sem temer sequer a morte. Por fim, e por enquanto, é tornar-se o que
já somos conhecendo a nós mesmos...
"Não foi por falta de discursos que fui condenado, mas por falta
de audácia e porque não quis que ouvísseis o que para vós teria sido mais
agradável, Sócrates lamentando-se, gemendo, fazendo e dizendo uma porção de
coisas que considero indignas de mim, coisas que estais habituados a escutar de
outros acusados"
Sócrates
[1]
2 Método de ensino que
consiste em que o educando chegue à verdade por seus próprios meios. (Moderno Dicionário da
Língua Portuguesa. Disponível em <http://michaelis.uol.com.br>)
[2] SANTOS, Mario Ferreira. Convite à Filosofia e à História da Filosofia. Ed. Logos. 5ª
edição.
[3] KIERKGAARD, Sören Aabye. Temor e Tremor in Os Pensadores. Ed. Abril Cultural. 1979
[4] CHAUI, Marilena. Convite
à Filosofia. Ed. Ática. São Paulo. 2000 – p.9
[5] PESSANHA, José Américo Motta. Diálogos / Platão in Os Pensadores. Ed. Nova Cultural. 1991
[6] SANTOS, Mario Ferreira. Op.cit.
[7] KIERKGAARD, Sören Aabye. Op. Cit.
[8] SANTOS,
Mário Ferreira dos. Métodos Lógicos e
Dialéticos Vol. I. Ed. Logos. 3ª edição
[9] Defesa de Sócrates in Os Pensadores. Ed. Nova Cultural. São Paulo. 1987
[10] Frei
Francisco de Monte Alverne in Antologia
de Famosos Discursos Brasileiros
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