segunda-feira, 9 de abril de 2012

Concepção Ética de Santo Agostinho

Prólogo


Quando o moralista cristão se apropria de certas conclusões de
sistemas seculares de moralidade, sem revertê-las ou transformá-las,
o resultado é a tentativa de sintetizar elementos essencialmente incompatíveis
(E. Clinton Gardner, 1960)

Traçar em poucas linhas a magna compreensão ética de um colosso da literatura universal não é tarefa simples. Difícil é extrair excertos de suas obras, e difícil é selecionar o que dele disseram seus comentaristas e críticos. Para tamanha empresa se faz necessário reduzir drasticamente o universo a um átomo, tomar por amostragem uma ou outra citação e fazer do mínimo o máximo. Dissertar sobre a concepção ética de Santo Agostinho é remontar um cenário inexistente no mundo hodierno. É alimentar uma utopia da piedade, ou querer voar próximo ao sol com asas de cera. Mas o desafio está lançado, e não há como voltar sem combater.

Agostinho na Literatura


Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores,
Porque nos criastes para Vós e o nosso coração vive inquieto,
enquanto não repousa em Vós

Agostinho pensou a ética em fôrmas neoplatônicas. Para ser mais exato, pensou a moral, não a ética. Era um homem que, segundo o tradutor J. Oliveira Santos, “gostava [...] de ler na língua materna e toda a sua cultura se fez essencialmente latina[1]”. A moral latina em que fora criado estava envernizada com a utopia estóica de Sêneca e a retórica brilhante de Cícero, no entanto, a realidade era bem outra. Giulio Leone comenta que “Petrônio [realizou no Satiricon] a pintura e a descrição daquele mundo terrivelmente corrupto [...], pois os tempos e os ambientes denunciavam uma profunda e contínua decadência [de] uma sociedade que sufocava no prazer e no vício por falta de ideais [2]”.

Agostinho confessa que “os espetáculos teatrais, cheios de imagens [de suas] misérias e de alimento próprio para o fogo [de suas] paixões”, arrebatavam-no, ao que Paul Tillich acrescenta afirmando que naquela época “a esfera da sexualidade havia sido terrivelmente profanada. Nem a razão estóica nem o neoplatonismo tinham conseguido superar essa profanação em larga escala[3]”. Quando aos 32 anos converteu-se ao cristianismo, trouxe consigo uma trajetória de buscas e desencontros, admirando Cícero, aderindo ao maniqueísmo, uma “seita fundada pelo sábio persa Mani, baseada na crença de dois princípios absolutos que regiam o mundo: o Bem e o Mal” [4], e por último, conhecendo as concepções platônicas da Academia.

O neoplatonismo de Agostinho marcou sua ética. Bertrand Russell diz que “há uma descrição muito simpática de Platão, a quem coloca acima de todos os outros filósofos, [pois] Platão viu que Deus não é nenhuma coisa corpórea, mas que todas as coisas recebem a sua forma de Deus, e de algo imutável [5]”. Em verdade, Agostinho apreciou muito dos filósofos antes de sua conversão e procurou a duras penas conciliar o cabedal ético dos gregos com a moral do cristianismo. Havia um ponto comum a ser explorado: o valor das virtudes!  Desde os tempos homéricos “a virtude [...] significava o mais alto ideal cavalheiresco aliado a uma conduta cortesã e ao heroísmo guerreiro[6]”, e em Sócrates virtude era “ser o que realmente deseja parecer[7]”. Quatro dessas virtudes eram constantemente exaltadas nos escritos filosóficos: a temperança, a fortaleza, a justiça e a prudência. Poderiam elas ser transportadas para dentro das fronteiras cristãs? Não! Antes das virtudes cardeais existiam as teologais, conforme classificou Agostinho. Fé, Esperança e Amor superavam a temperança e as demais virtudes.

A empresa agostiniana em promover um diálogo da teologia cristã com a filosofia encontrava severas críticas dentro das fronteiras religiosas, a começar pelos escritos atribuídos a Paulo Apóstolo, o qual dizia a seus discípulos que “[sua] palavra e a [sua] pregação não consistiram em palavras persuasivas de sabedoria humana, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a [...] fé [dos cristãos] não se apoiasse em sabedoria dos homens, mas no poder de Deus (1ª Coríntios 2.4)”. Seguindo a linha férrea de Paulo surge Tertuliano, cerca de 200 anos depois, perguntando: “O que há de comum entre Atenas e Jerusalém, entre a Academia e a Igreja?[8]”. Mais ainda, Tertuliano argumenta no seu escrito “A sabedoria deste século” dizendo:

a filosofia é a matéria básica da sabedoria mundana, intérprete temerária da natureza e da ordem de Deus. De fato, as próprias heresias são equipadas pela filosofia. Ela é a fonte dos ‘eons’, das ‘formas’ infinitas e da ‘trindade do homem’ no sistema Valentiano. Ela gerou o ‘bom deus’ de Marcion, o ‘bom deus’ sossegado que vem dos estóicos. Quando Marcion afirma que alma perece, obedece a Epicuro; [...] quando confunde a matéria com Deus, repete a lição de Zenon; quando alude a um deus de fogo, torna-se aluno de Heráclito. Hereges e filósofos manipulam o mesmo material...[9]

            Platonizar a teologia não foi tarefa simples para Agostinho, mesmo por que outro cristão, Orígines de Alexandria, sofrera condenação como herege por haver realizado empreita igual. Mas Agostinho prevaleceu sobre Orígines, não tanto pela erudição, pois Liébaert lembra que “Erasmo rendia [a Orígines] uma homenagem nada banal, declarando que aprendia mais sobre filosofia cristã em uma página de Orígines do que em dez de santo Agostinho[10]”. O bispo de Hipona prevaleceu por ter se tornado um estadista eclesiástico que teologizava para a Igreja, ao contrário de Origines que fez da teologia um instrumento de reflexão existencial. Segundo Tony Lane, Agostinho tornou-se “o Pai da Igreja Ocidental [e como tal], foi o primeiro a desenvolver a doutrina da igreja invisível, [cujos limites são] conhecidos apenas por Deus[11]

            A igreja agostiniana tornou-se o Reino de Deus, e a divisa do amor tornou-se lei dentro de suas fronteiras. Cavalgando sob a máxima “ame e faze o que quiseres”, Agostinho idealizou a conduta dos súditos cristãos como uma superação das ordens mundanas. As próprias virtudes cardeais subordinaram-se às teologais, pois foram convertidas ao Evangelho.

“temperança é o amor que se conserva inteiro e incorrupto para Deus; fortaleza é o amor que mantém todas as coisas prontas por causa de Deus; justiça é o amor que quer servir só a Deus e, portanto, controla todas as demais coisas em termos de sua subordinação ao interesse do homem; prudência que distingue bem entre aquilo que o favorece para Deus e aquilo que pode entravá-lo[12]”                         

Agostinho nas Confissões


Nas Confissões, Agostinho tece poesia com filosofia, e filosofa com teologia. Faz declarações de amor a Deus e intui o amor de Deus pelos homens. Suas mãos e seu coração instrumentalizam a palavra para a exaltação da virtude cristã por excelência. Utiliza-se do termo carus para traduzir o ágape, pois “o termo latino expressa a idéia de ‘grande valor’, algo fundamental que se torna virtude à medida que os ser humano é capaz de impulsionar a vontade pessoal a agir em prol do bem. [...] De fato, o termo charitas, na maioria dos casos, é utilizado quando ágape expressa seu mais alto nível de amor...[13]”. Tamanha é a eloqüência do ágape agostiniano, que lemos em um dos seus textos uma profunda convicção de seu amor:

“A minha consciência, Senhor, não duvida, antes tem a certeza de que Vos amo.
Feristes-me o coração com a vossa palavra e amei-Vos. O céu, a terra e tudo o que neles existe dizem-me por toda parte que Vos ame. Não cessam de o repetir a todos os homens, para que sejam inescusáveis. Compadecer-Vos-eis mais profundamente daquele de quem já Vos compadecestes, e concedereis misericórdia àquele para quem já fostes misericordioso. De outro modo, o céu e a terra só a surdos cantariam os vossos louvores.
Que amo eu, quando Vos amo? Não amo a formosura corporal, nem a glória temporal, nem a claridade da luz, tão amiga destes meus olhos, nem as doces melodias das canções de todo o gênero, nem o suave cheiro das flores, dos perfumes ou dos aromas, nem o maná ou o mel, nem os membros tão flexíveis aos abraços da carne. Nada disto amo, quando amo o meu Deus. E contudo, amo uma luz, uma voz, um perfume, um alimento e um abraço, quando amo o meu Deus, luz, voz, perfume e abraço do homem interior, onde brilha para a minha alma uma luz que nenhum espaço contém, onde ressoa
uma voz que o tempo não arrebata, onde se exala um perfume que o vento não esparge, onde se saboreia uma comida que a sofreguidão não diminui, onde se sente um contato que a saciedade não desfaz. Eis o que amo, quando amo o meu Deus[14]”.

            Aqui, as linhas platônicas se mostram evidentes. Agostinho contrasta a claridade da luz com a própria Luz, as doces melodias e a própria Voz, o cheiro das flores e o próprio Perfume, o maná e o próprio Alimento, os membros de carne e o próprio Abraço. Sabemos pelo mito da caverna que, para Platão, o atual estado de existência de toda a humanidade é o de prisão. Assim sendo, os homens em sua totalidade estariam aprisionados a esta vida, não sendo o viver mais que mera penalidade. De fato, o cavernismo platônico divorciou santo Agostinho de seu mundo, uma vez que o levou a conceber tal mundo como sombrio e tenebroso, iluminado artificialmente por uma luz emprestada (ou fugidia). Se o mundo é prisão, segue-se que tudo é penitenciário. Duas sensações brotam das Confissões agostinianas: 1ª Sensação de desespero, uma vez que a prisão em que hora se encontra é a única experiência de vida que conhece, sem a menor perspectiva de outra vida além desta; 2º Sensação de esperança, uma vez que a vida em que hora vive é mera estação existencial, cuja finitude é previsível, mas não absoluta. As Confissões tanto convidam à busca quanto à renúncia da vida. Em ambos os casos, elas impõem o divórcio do homem com seu mundo. Não pode o cristão agostiniano continuar unido à sua prisão aceitando com naturalidade o "estar preso". Não pode continuar unido à sua prisão após escapar das cadeias.  Em resumo, estar na caverna de Platão é condição existencial de todos, permanecer nela, não.  

Eis-me nos campos da minha memória, nos seus antros e cavernas sem número, repletas, ao infinito, de toda a espécie de coisas que lá estão gravadas, ou por imagens, como os corpos, ou por si mesmas, como as ciências e as artes, ou, então, por não sei que noções e sinais, como os movimentos da alma, os quais, ainda quando a não agitam, se enraízam na memória, posto que esteja na memória tudo o que está na alma. Percorro todas estas paragens. Vou por aqui e por ali. Penetro por toda parte quanto posso, sem achar fim. Tão grande é a potência da memória e tal o vigor da vida que reside no homem vivente e mortal!
Que farei, ó meu Deus, ó minha verdadeira Vida? Transporei esta potência que se chama memória. Transpô-la-ei para chegar ate Vós, ó minha doce Luz? Que me dizeis? Subindo em espírito até Vós, que morais lá no alto, acima de mim, transporei esta potência que se chama memória. Quero alcançar-Vos por onde podeis ser atingido, e prender-me a Vós por onde for possível. Os animais e as aves têm também memória. Doutro modo não poderiam regressar aos covis e ninhos, nem fariam muitas outras coisas a que estão acostumados. Sem a memória não poderiam contrair hábitos nenhuns.
Passarei, pois, além da memória, para poder atingir Aquele que me distinguiu dos animais e me fez mais sábio que as aves do céu. Passarei, então, para além da memória, para Vos encontrar. Mas onde, ó Bondade verdadeira e suavidade segura? Para Vos encontrar, mas onde? Se Vos encontro sem a memória, estou esquecido de Vós. E como Vos hei de lá encontrar se me não lembro de Vós?[15]

A caverna de Agostinho é uma alusão à de Platão. É um mundo de sombras, não de irrealidade, mesmo por que as sombras são reais tanto quanto a caverna. Não são reais somente para os homens que a percebem, mas são reais em si mesmas. Elas possuem existência na caverna e são essencialmente sombras, logo, são conformes à sua natureza. Ainda que Platão as apresente no conjunto da alegoria como representantes da ignorância (em contraste com o conhecimento perfeito do mundo exterior), é possível entendê-las em sentido estrito como representantes da realidade tal qual se apresenta a nós. O erro (ignorância) não procede da sombra, mas da compreensão dos prisioneiros, que não a conceituam como "sombras", mas como objetos vários. A primeira conclusão é esta: a ignorância humana é resultado do sujeito pensante, não do objeto observado. Embora Agostinho nos induza a conceber a caverna como responsável pela ignorância das coisas, quando vemos um dos prisioneiros diante da coisa-em-si, a mesma ignorância continua no sujeito pensante.

Conclusão


Agostinho se propôs como modelo de moral para os homens, não por sua perfeição, mas por sua busca filosófica. Desde a infância até a senilidade mostrou-se uma pessoas aberta ao diálogo, e por isso, sempre polêmico. Conseguiu como poucos tocar as várias pontas dos extremos, ambicionando resolver racionalmente as demandas do cérebro e da alma, sem, no entanto, conseguir tamanho empreendimento. Legou, a bem da verdade, material bélico suficiente para que os guerreiros da razão bombardeassem seus contrários, e munição não faltou para que agostinianos de vários tipos se armassem até os dentes. Mas nem tudo saiu como Agostinho idealizou. Pensemos naquele cristão que tenha superado a concepção mundana da existência. Chegou ele ao zênite do conhecimento perfeito e descobriu que esta vida é mera ilusão, por que a relatividade das coisas não permite a absolutização da verdade.
Queria Agostinho conduzir os homens ao mundo das idéias. Mas isto mostrou-se impossível, por que a cidade dos homens é o contexto relativizador da existência dos mortais.
Resta a Platão reduzir seu discurso filosófico a um comodismo existencial, vivendo o senso comum com os demais, embora viva consigo e pera si no mundo das idéias.

Exemplo prático é o mito da morte. Quem de nós ousa abraçar o nihilismo, a nadificação do ser, a aniquilação absoluta da vida? É tão mais lógico acreditar no além-túmulo! Eu mesmo não dou um passo sequer em direção ao ateísmo nadificante da existência. Não consigo, nem com a ajuda de Sartre, conceber a vida como um projeto de poucos anos e nada mais. Neste caso, fico com o senso comum de milênios de humanidade: há algo mais além, aguardando a humanidade, no além...

Bibliografia


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JUNIOR, Dr. João Luiz Correia, A caridade – Um estudo a partir das primeiras comunidades cristãs, In: A Caridade, um estudo bíblico teológico, São Paulo, Ed. Paulinas, 2002
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[1] SANTOS, J. Oliveira, Confissões, São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1980, p.8
[2] RUAS, Miguel (tradutor), Petrônio, Satiricon, São Paulo, Ed. Escala, p.10,12
[3] TILLICH, Paul, História do Pensamento Cristão, São Paulo, Ed. ASTE, 2004, p.123
[4] ABRÃO, Bernadete Siqueira. História da Filosofia, São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1999, p.98
[5] RUSSELL, Bertrand, História da Filosofia Ocidental, São Paulo, Ed. Nacional, 1968, p.60
[6] SOUZA, José Cavalcante, Os Pré-Socráticos – Vida e Obra. São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1999  p.9
[7] PESSANHA, José Américo Motta, Sócrates, Vida e Obra. São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1999 p. 115
[8] LIÉBAERT, Jacques, Os Padres da Igreja – Vol. I, São Paulo, Ed. Loyola, 2004, 2ª Ed., p. 78
[9] BETTENSON, Henry, Documentos da Igreja Cristã, São Paulo, Ed, ASTE, 2001, p.33
[10] LIÉBAERT, Jacques, op.cit.
[11] LANE, Tony, Pensamento Cristão, Vol. 1, São Paulo, Ed. Abba Press, 2007, p.63,64
[12] GARDNER, E. Clynton. Ética Cristã e Fé Bíblica, 1960. In: Santo Agostinho, On the Morals of the Catholic Church, em Whitney J. Oastes, ed. Basic Writings of St. Augustine, Nova York, Randon House, 1948, cap. XV
[13] JUNIOR, Dr. João Luiz Correia, A caridade – Um estudo a partir das primeiras comunidades cristãs, In: A Caridade, um estudo bíblico teológico, São Paulo, Ed. Paulinas, 2002, p.61
[14] SANTOS, J. Oliveira, Confissões, São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1980, p.263         
[15] SANTOS, J. Oliveira, op. cit., p.276

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